domingo, 5 de abril de 2015

O triângulo das águas ou O cais, o mar, a travessia.

O triângulo das águas é sempre pertinente, pensou naquele dia de chuva. 

Todos os livros e músicas que haviam lhe deixado insígnias transparentes, embora doloridas, buscavam retratar as aflições humanas (demasiadamente humanas) através de conexões possíveis entre o cais, o mar, a travessia.
A água flui no movimento de um cálice a outro nas mãos da Temperança, o XIV Arcano de um tarô há muito esquecido no fundo da gaveta, por medo ou por uma inabilidade congênita com a manipulação dos símbolos. Talvez os dois.  Essa é a mesma água que rega e rege o fluxo da vida, concluiu em um momento de epifania, entre goles largos da única bebida forte que lhe havia sobrado no armário. 

O cais, o mar e a travessia. Resolveu se concentrar sobre essa conexão que, no momento, era a sua maior urgência. Afinal, por mais poéticas que fossem - juntas ou separadas - essas três palavras atravessavam a sua vida com uma frequência esmagadora, e a bebiba havia ativado o modo "filosofia de buteco" em seus monólogos interiores.

O cais é o ponto fixo das chegadas e das despedidas. E pela sua natureza de margem, é perpassado, transitado. Ali, ninguém fica. E de lá ele também não sai: "invento o cais, invento mais que a solidão me dá", mas "pode ser do vento vir contra o cais" eram as músicas que cantarolavam desmedidas dentro dela.

Imortalizada nos escritos de Guimarães Rosa, a travessia é o mais importante de todo caminho. E não o ponto de chegada ou o ponto de partida. A travessia também possui natureza de margem, mas de uma forma diferente. Enquanto o cais é o ponto fixo e seguro, a zona de conforto, mesmo que momentaneamente, a travessia é o movimento. Está à margem de tudo que não transita, de tudo que é certo, que é seguro. A travessia, pensou, é o próprio corpo no mundo - "minha casa não é minha e nem é meu este lugar".

O mar, que invade os olhos e hipnotiza os sentidos cada vez que quebra nas pontas de areia, nas pedras, nos pés. Manoel de Barros, assim como ela, criado, absorvido e incorporado pelo mato, pela terra, pela fruta no pé e pelo pé no barro, disse: "Por que deixam que um menino que é do mato/Amar o mar com tanta violência?". Talvez seja mesmo o caso de apontar para a fé, e re(A)mar.

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